Uaréview
Por Marcelo Soares
É engraçado como conceitos sobre um objeto mudam com o passar das décadas. Em 1982 Tron: Uma odisséia eletrônica trouxe a segunda paranóia típica dos anos 80, depois da “paranóia espacial”, a histeria sobre o perigo dos avanços tecnológicos e como uma inteligência artificial poderia dominar sistemas de mísseis atômicos e destruir a humanidade em segundos.
Em pleno fim da primeira década do século XXI, Tron Legacy nos mostra outro olhar sobre a tecnologia, não mais como destruidora, mas, sim, criadora de novas formas de vida e possibilidades.
Spoilers a frente
Nessa nova incursão no mundo virtual da Grade, descobrimos que Kevin Flynn (Jeff Bridges), protagonista do primeiro filme, desapareceu sem deixar vestígios. A sua empresa, a Encom, é gerenciada pelos demais acionistas e seu filho, Sam (Garrett Hedlund), com 27 anos, não quer assumir o controle da empresa e prefere boicotá-la. Um dia o braço direito de seu pai, Alan Bradley (Bruce Boxleitner), recebe um bipe, o que faz com que Sam vá até o local onde funcionava a antiga loja de Fliperama de seu pai, onde sem querer é digitalizado e entra na Grade, hoje controlada por CLU, um clone digital de Flynn, criado pelo próprio com o objetivo de construir uma rede perfeita.
Com uma premissa principal do reencontro de pai e filho e luta contra uma tirania, Tron 2 tem seu impacto maior pelo visual, já que seu enredo segue a cartilha básica de aventura de Hollywood, com alguns conceitos e símbolos jogados superficialmente no meio das lutas e cores. Porém, esses conceitos, mesmo na superficie, abrem brechas para boas discussões.
A primeira coisa que me pegou ao ver Tron 2, e seu anterior, foi o conceito religioso do Usuário e de Flyn, um Deus com tendências zen. Não muito pela referencia cristã de alguém todo poderoso que cria vidas, modifica a realidade, é adorado, e gera uma tríade (Flyn, o pai, CLU, o filho, e Tron, o espírito Santo). Mas, me apeguei mais a lógica religião x política, isto é: o binômio sociedades democráticas mitológicas versus sociedades ditatoriais pagãs.
No primeiro filme é citado que no inicio da Grade, quando tudo estava se construindo ainda e a liberdade dos programas era maior, eles adoravam o Usuário como um Deus perfeito, sem erros, que a tudo construiu e tudo sabia. Sob o controle do Master Control e de CLU, os programas são impelidos a fazer oposição à crença no usuário, todos que acreditam nele são presos e reprogramados. Só o MCP e CLU podem ser adorados e temidos. É a velha forma bem exposta em 1984, de George Orwell, onde o controle político passa também pelo religioso/filosófico.
Outro ponto de analise feito por minha mente doentia foi à lógica do herói dentro desse universo tronificado, que me remeteu até o Dark Knight de Nolan, onde Harvey Dent proferi a seguinte sentença: “Ou se morre como herói, ou vive-se o bastante para se tornar o vilão”. E é o que vemos com o grande herói tecnológico da primeira película nesse segundo filme. Tron, o personagem, depois de abatido pelo CLU, e dado como morto por Flyn, é reprogramado e vira o grande assassino do vilão, trajado até de roupas negras e capacete (para eliminar a necessidade de usar outro ator digital e também dar o básico ar de máquina de matar).
Mas os temas mais interessantes, e pouco explorados, da odisséia eletrônica ficam por conta da visão mesmo de tecnologia e humanidade.
Em Matrix, no fim de um século de grandes revoluções tecnológicas e de uma cultura pop em estado de mudança, vimos o quanto a dependência da tecnologia podia nos levar a ruína e como a rebelião contra a vida artificial era nossa única salvação. Onze anos depois, com o boom de redes sociais, aumento do tráfego de informação via ciberespaço e cada vez mais conexão nossa com as máquinas – diferente da lógica anterior “humanos superiores, máquinas como servos”, hoje somos mais como sócios em busca de uma parceria – Tron nos traz exatamente o avanço que a tecnologia pode nos levar.
Kevin Flynn prenuncia a aurora de uma nova época para a humanidade com a descoberta dos ISOs, e sua possibilidade de cura de doenças e revolução de como vemos as máquinas e sua relação com o homem. Daquele mundo virtual surgiu vida “do nada”, como uma criação espontânea, e a tirania – com medo de perder sua função, seu poder, ou por pura vaidade, inveja – os caça e expurga. Para mim, Tron fala que dessa nova relação do Homem com a tecnologia uma nova raça humana surgirá, uma geração que será o futuro da humanidade, temida pelos tradicionalistas e conservadores.
Outra questão interessante apresentada pelos filmes é o conceito de representação virtual de nosso eu real. Em Tron vemos os discos luminosos portados por cada programa como o receptáculo de todas as informações a respeito dele, quase como uma alma virtual que ao jogá-lo em uma batalha estaria jogando a si mesmo, se arriscando a se perder. Me lembrou muito a lógica usada na série
Caprica, onde era possível criar um avatar em um mundo virtual até de pessoas falecidas, utilizando fragmentos de informações sobre ela no mundo virtual: fotos, textos, vídeos, tudo se unindo para gerar um ser digital que representaria quem é/foi a pessoa.
Afinal, o que espalhamos por redes sociais, blogs, youtubes, etc, nos representa de verdade? Poderíamos dizer que aquilo unificado pode ser lido como o que somos? Até onde o vicio de se mostrar, exibir um pouco do que se é no mundo virtual pode nos ser prejudicial?
A partir desse ponto, vejo que Tron também alfineta o lado ruim da tecnologia – que como coloquei acima é mais vista como benéfica no filme. Tanto Kevin quanto Sam Flyn ao serem presos bradam: “Eu não sou um programa”, o que vejo como um grito pela liberdade do homem ante o alto grau de usabilidade da tecnologia nos dias de hoje, isto é, devemos utilizar a tecnologia como nossa parceira e de forma benéfica, mas, ao mesmo tempo, estar sempre alerta para não virarmos escravos dela e vivermos em função dela. O que nos dias de hoje colocaria como o vicio em crescimento dos jovens pela internet, redes sociais, chats, abdicando da vida real. Afinal, mesmo como todo esse mundo tecnológico fantástico, o que liga pai e filho é falar sobre a velha moto em conserto e o prazer de andar livre nela.
Ainda sobra espaço no filme para uma critica as corporações que ainda buscam velhos formatos de relacionamento digital, em tempos de compartilhamento de informações e programas, a se arriscar em viver uma vida de adrenalina e aventuras e, como o próprio nome diz, a importância de legados, sejam familiares, tecnológicos ou sociais.
É uma pena que por preferir a aventura simples, a Disney perdeu uma boa chance de fazer algo bem mais complexo dentro dessas temáticas que aparecem superficialmente, e, assim, trazer um novo marco para o cinema, como o primeiro filme foi e Matrix, por que não?
Em suma, Tron é um filme mais que recomendado para quem curte diversão, bons efeitos, ação, tecnologia e filosofia. Bem que podiam explorar mais agora em outras mídias e ampliar esse universo tão interessante.