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segunda-feira, 27 de setembro de 2010

Fractal

Uaréview

Por Rafael Rodrigues

“Nuvens não são esferas, montanhas não são cones, continentes não são círculos, o som do latido não é contínuo e nem o raio viaja em linha reta”


Uma história policial cheia de intrigas e reviravoltas. Não, não estamos falando de um filme ou livro americano; estamos falando de Fractal, HQ brasileira que figura entre os melhores roteiros (se não o melhor) já feitos numa história em quadrinhos brasileira.


Não é fácil construir uma história policial provocante, instigante e que prenda nossa atenção do início ao fim. Mais difícil ainda é trabalhar o gênero sem se deixar levar pelas facilidades estéticas, visuais ou narrativas que facilitam a vida do escritor e tornam a história mais acessível, mas que geralmente acarretam na perda de qualidade. É também, de certa forma uma tarefa ingrata criar uma boa história de crime com “alma”. Se tudo isso já seria pedir muito em mídias que trazem maiores “facilidades” para as histórias policiais, imagine então transformar isso numa história em quadrinhos.

Pode parecer besteira, mas numa HQ que, diferente de um livro possui suas verdades “escancaradas” pelas páginas ilustradas e diferente de um filme não “impede” o espectador de pular sequências, é extremamente difícil fazer funcionar uma história que pode facilmente ser estragada por um spoiler da própria página que o leitor desafortunado possa ver antes de ler a toda a sequência até ali. Isso dá uma idéia da dificuldade desse tipo de narrativa em quadrinhos. Mas Fractal prova que, com uma história bem feita, a mídia em que ela é usada pouco importa, desde que usada de forma eficiente.

Desenvolvida por Marcela Godoy (roteiro) e Eduardo Ferigato (arte), Fractal nos leva ao mundo do Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa de São Paulo, onde o perito Criminal Liel Lorca é chamado para tomar parte na investigação envolvendo o desaparecimento de cinco rapazes. Mas o que parecia ser um caso comum se transforma numa intrincada colcha de retalhos quando Liel percebe padrões bizarros entre as vítimas que envolve cabala, maçonaria e fractais. Com uma vida pessoal conturbada por conta de sua namorada excêntrica, Liel acaba se envolvendo numa trama que ele não sabe se quer ver o final. Fractal traz aqueles elementos comuns das histórias policiais para nossa realidade com grandes reviravoltas e muita violência visual explícita. Mas apesar da história cheia de clichês típicos deste tipo de narrativa, traz uma história mais calcada nos personagens do que propriamente no mistério. E esse é o grande mérito da HQ, pois uma história de crime, afinal, não é sobre crimes, e sim sobre pessoas.

Falando em roteiro, ouso dizer que talvez o melhor roteirista de quadrinhos da atualidade (que já tenha publicado algo) é uma mulher. Marcela Godoy consegue trazer uma sensibilidade que é – infelizmente – incomum nas histórias em quadrinhos brasileiras, geralmente focadas mais em outros objetos mais estéticos, seja pela intenção comercial ou simplesmente pela incapacidade dos roteiristas de criar um roteiro competente. E este é outro ponto que vale ser comentado em Fractal, pois mesmo hoje, numa época em que os quadrinhos nacionais estão ganhando cada vez mais espaço, as melhores produções (citando como exemplos Necronauta, de Danilo Beyruth e Prontuário 666 – Os anos de cárcere de Zé do Caixão, de Samuel Casal) contam com desenhistas que fazem as vezes de roteiristas, ou na melhor das hipóteses, roteiristas-desenhistas. Não que isso torne uma HQ pior ou melhor (as hqs citadas, por exemplo, são excelentes), mas esta dificuldade de encontrar profissionais nos quadrinhos brasileiros que se dediquem apenas às técnicas de roteiro (lembro agora apenas de Olinto Gadelha que roteirizou Chibata!) mostra o quanto o Brasil ainda precisa evoluir muito neste meio. Mas no caso de Fractal, conta também o fato de que Marcela Godoy não é uma iniciante no meio, tendo publicado dois romances e roteirizado outros álbuns em quadrinhos, além de ter trabalhado para editoras como a Pixel e Devir (esta última, inclusive, é a editora da HQ).

Os diálogos são outro ponto a favor da história. Os personagens se expressam de forma mais natural, fazendo difícil acreditar que uma história assim seria “respeitada” em outra mídia como a TV, onde diretores acham que todo mundo fala de forma culta (e quando não, falam de forma estereotipada) e atores acham que atuam. Menos mal que a história saiu em quadrinhos. Além disso, há diversos outros detalhes da trama que enriquecem a história e ajudam-na a funcionar de forma adequada dentro de uma HQ (mas que não posso comentar detalhadamente para não dar spoiler).

Outro detalhe importante e que não pode ser deixado de lado é o esforço da autora em dar credibilidade para a história e torná-la, não só verossímil, mas também calcada na realidade brasileira. Por essa razão a roteirista passou 4 meses intensos numa pesquisa de campo com o DHPP da polícia Civil de São Paulo, onde tinha que conciliar seu trabalho diurno com o “trabalho noturno” que era o laboratório para o roteiro de Fractal. Uma sequência da Hq, inclusive, é tirada diretamente de um caso real que a roteirista presenciou. Mais uma vez, ponto para a história por misturar realidade e ficção de forma tão eficiente.

No que se refere à arte, Eduardo Ferigato (que, confesso, nunca tinha ouvido falar antes de ler esta HQ) trabalha bem, complementando a história de forma bastante competente, embora pessoalmente ache que o artista poderia ter ousado mais na narrativa sequencial. A história inicia de forma bastante fluída e interessante, mas depois se torna mais contida e “conservadora”, por assim dizer, limitando-se apenas a expressar a história, para só em seu desfecho termos de volta aquela sensação de criatividade na arte. Claro que talvez esta tenha sido exatamente a intenção do desenhista (pois a história de fato fecha uma espécie de “ciclo”) ou talvez por conta do tempo, mas mesmo assim, me incomodou um pouco ver páginas dinamicamente bem desenhadas, mas confinadas dentro de quadros estáticos. De qualquer maneira, isso não chega a prejudicar a história, que está muito bem desenhada – e muitas vezes bem explícita.

Com um bom roteiro, boas reviravoltas, uma história com carga dramática impactante e uma arte competente, Fractal torna-se fácil uma leitura indispensável para quem é fã de boas histórias, trazendo para os quadrinhos um gênero bastante desgastado, mas mostrando que o grande mérito de uma narrativa não é seu caráter inédito, mas sim a criatividade e originalidade com que os clichês são trabalhados.

Nota: 8,9

P.S.: Agradecimentos ao Impulso HQ, de onde "roubei" respeitosamente uma das imagens desta resenha.


Rafael não é esfera, cone ou círculo, nem é contínuo ou anda em linha reta. Talvez por isso sempre tenha gostado de fractais.

2 comentários:

Freud disse...

Cara demorou essa resenha!!

Faz séculos eu deixei de comprar essa por outra hq pq essa o Rafael ja ia resenhar (e me arrependo, e ainda nem fiz a resenha da q comprei...)

Mas COM CERTEZA ainda vou comprar essa. É um quadrinho que, assim que saiu, tive vontade de ler.

Ótimo review, me instigou ainda mais a ler logo.

Marcelo Soares disse...

Lembro quando li pela primeira vez sobre Fractal, fui todo pimpão falar com o Rafael sobre ela e ele: "Ah, já tenho, vou fazer uma resenha dela". Isso foi a um bom tempo atr´´as, e agora está ai. Um dia compro ela, assim como Necronauta, Chibata, Sabado dos Meus amores...